29/10/09

A tua lembrança

Sinto que a tua lembrança se dissipa
da minha mente, como uma velha estampa;
a tua figura já não tem cabeça
e um braço está desfeito, como nessas
decalcomanias desoladas
que os rapazes fazem na escola
e são depois, no livro esquecido,
uma mancha dispersa.

Quando estreito o teu corpo,
tenho a leve sensação de que está feito de estopa.
Falas-me, e a tua voz vem de tão longe
que mal consigo ouvir-te. Além disso, já não acredito em ti.
(...)

Nicolás Guillen* in Antologia Poética


* Poeta cubano nascido em 1902, representa, como já aqui se referiu, a poesia negra e crioula do seu país, poesia essa que se reveste de um grande humanismo e consciência social, ou não fosse ele um poeta do povo e para o povo! É também autor de inúmeros poemas, denominados de amor.

25/10/09

Dez réis de esperança



Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.

Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.

Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente.

Aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio
encosto da vidraça da janela

Não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
ouviram, viram, ouviram,viram,
e não perceberam.

Essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule,
flutuando no pranto do desencanto.

Se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

António Gedeão


Se não fosse a esperança, o ardor das convicções e a veemência dos valores, restaria muito pouco a muitos de nós...

24/10/09

Com uma criança nos braços


Vem, através de tudo vem,
com lentos, lentos mas implacáveis passos
aquela mulher que tem
uma criança nos braços.
Vem, através das páginas da história
que já não conseguimos apagar
- quem pudesse fechar a memória
e deitar a chave ao mar.
Vem, através de tudo avança.
E há pessoas que ficam ofendidas
porque aquela mulher a aquela criança
deveriam ser proibidas.
Deveriam ser mas para sê-lo
os pássaros não teriam asas
e seria preciso toneladas de gelo
para apagar biliões de brasas.
E ela vem. Como se tudo desenhasse
em lentos, lentos mas implacáveis passos
- como se de Hiroxima voltasse
com uma criança nos braços.
Sidónio Muralha
Este poema, de um grande "poeta da condição humana", é para as meninas- mãe com quem trabalho no (nosso!) Grupo de Teatro do Centro da Mãe.

21/10/09

Saramago : Caim


Passados quase 20 anos eis que Saramago se vê novamente acossado por polémica similar aquando da edição do "Evangelho segundo jesus cristo", desta vez desencadeada por um tal de Mário David. Este eurodeputado arroga-se do direito de "sugerir" a Saramago que mude de nacionalidade, tudo porque "discorda" do conteúdo anti-bíblico do novo livro do autor, "Caim", o primeiro homicida da história da humanidade...

Não li (ainda) o livro, mas pelas notícias é manifesto que se trata de uma ficção cujos personagens são deus, caim e a humanidade e pelo desfolhar do qual se aborda, em modo crítico, o dogma bíblico. Sem entrar em preceitos religiosos, até porque esses são respeitáveis seja qual for a doutrina religiosa implicada na escolha de cada um, a minha pergunta é apenas uma:

35 anos após o 25 de Abril ainda se pensa exilar alguém por praticar o direito incontestável de LIBERDADE DE EXPRESSÃO?!

O camareiro

Este é um trabalho ímpar no panorama artístico actual.Trata-se de uma peça magistralmente encenada (encenação de João Mota) e sustentada por um elenco irrepreensível.
O texto , de Ronald Harwood, que além de dramaturgo é também guionista (lembram-se do filme O Pianista?) é de uma profundidade tocante e simultâneamente crítico e filosófico. Em traços gerais retrata o universo teatral "do avesso", ou seja transporta-nos aos bastidores de um teatro onde as emoções se atropelam, os medos se exarcebam, o improviso é previsível e, num reboliço de actores, efeitos de contra-regra e "bombardeamentos" (a tramóia ocorre em plena guerra e o espectáculo, dentro do espectáculo, é assolado por vezes com explosões bélicas) o enredo assume-se como um ode afectivo ao Teatro. Pelo meio, no decorrer da trama, expõem-se outros afectos, os que despontam nos bastidores de uma companhia de teatro, em que o actor principal era também um empresário e seu director. Destes afectos, há um que sobressai pela dedicação incondicional, inquestionável e eterna ao seu "sir". Trata-se do camareiro, soberbamente interpretado pelo Virgílio Castelo. A construção do personagem (o Norman) é arrepiante, com recurso à técnica, sim, mas sobressai porque o Virgílio se "entrega" de tal forma ao camareiro, que ante nós, espectadores, perpassa um desfile de emoções que não raras vezes nos arrepia no despontar de lágrimas e gargalhadas...
E depois há o Ruy de Carvalho ("Sir"), do qual será difícil rebuscar adjectivos que já não o tenham dignificado e tributado. Não sei qualificá-lo, é um actor majestoso! Vê-lo é um privilégio absoluto, é uma memória que se grava para sempre dentro de nós. É uma aprendizagem, uma estupefacção pelo talento, pela humanidade que ele emprega nos seus personagens...
Por ele, confirma-se, que "Ninguém ama tão rebarbativamente e desalmadamente como o actor"!

(Esta peça está em cena no teatro nacional D. Maria II até ao dia 25 de Outubro.)

20/10/09

Palavras...


As palavras são recursos inúteis quando se quer converter a mais sublime das emoções em poemas.
Por vezes, muitas vezes, a poesia não é mais que o desfilar de um gesto ou de uma lágrima que emudecem na grandeza do seu ardor. E que nos tolhe no desespero da razão.
Quisesse pincelar com versos a elegia dos afectos...Quisesse que um poema se enlevasse e cantasse em laudes a afeição. E que as estrofes se esgrimissem e gritassem odes com paixão...
Mas tudo emudece em redor, os gestos silenciam as palavras, as palavras mimetizam os afectos.
E estes...
evolam-se.
No discorrer de um tempo.

18/10/09

Funchal


amo o outono nesta cidade
as pequenas casas de raras cores
os campos de vinhas e cana-de-açúcar os pomares entre maio e
agosto.

Dizes:

Eis a tua cidade
a de zarco e colombo
as ruas estreitas tão inclinadas como o sol dos invernos profundos
os carros de cestos os caminhantes da encumeada.

eis-te no centro de tudo e os navios parados.

amo o outono nesta cidade com todas as viagens sem chegada.
na véspera já amara as verdes montanhas de leste
as chuvas abundantes
machico entre os seios de ana d`arfert.

depois voltei para sul e amei-te enquanto cantavas.
século antes navegadores de portugal deram-te um nome e
era funchal.
depois queimaram as árvores e o mais alto incêndio era uma ilha.
escravos errantes pararam o sol e à volta serenamente e sem paixão
espalharam o verde o azul.

nunca cantaram a alegria.

hoje
solitários e ébrios trabalham a pedra a beleza e o turismo

tu
envolta nas lendas e no sonho surgiste devagar e devagar
deste-me os mais belos frutos e os mais estranhos
as pitangas os araçás os maracujás e as romãs muito depois
da primavera.

eras mulher e quis guardar-te para sempre no coração de uma
cidade surpreendida.
foi então que vi a morte aproximar-se vinda do horizonte e
cobrir o pôr do sol das tuas tardes
vi morrer a água a luz a leve sombra de palidez da tua fronte
vi as aves marítimas seguirem para longe em voo raso
e pela última vez
definitivamente só

eu amei o outono nesta cidade.

José Agostinho Baptista in "Deste lado onde"


... é a cidade que se impõe em cada voo, que resgata todos os que partem, sejam os poetas que a entoam em versos, sejam os sonhadores que almejam dobrar o horizonte...
E os regressos, esses, são cercos ladeados de mar.

06/10/09

FÉRIAS !!!


Até breve!

Londres







Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro

os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora o linho
mais bordado ou em casas
como aquela onde Rimbaud
comeu e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada

os pássaros de Londres
quando termina o dia e o sol
consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite

os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos.

Mário Cesariny de Vasconcelos in "Poemas de Londres"

Lisboa


Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais
A cidade onde desenho
Teu rosto com sol e Tejo.
Caravelas te levaram
Caravelas te perderam
Esta é a cidade onde chegas
Nas manhãs de tua ausência
Tão perto de mim tão longe
Tão fora de seres presente.
Esta e a cidade onde estás
Como quem não volta mais
Tão dentro de mim tão que
Nunca ninguém por ninguém
Em cada dia regressas
Em cada dia te vais.
Em cada rua me foges
Em cada rua te vejo
Tão doente da viagem
Teu rosto de sol e Tejo
Esta é a cidade onde moras
Como quem está de passagem.
Às vezes pergunto se
Às vezes pergunto quem
Esta é a cidade onde estás
Com quem nunca mais vem
Tão longe de mim tão perto
Ninguém assim por ninguém.
Manuel Alegre
Foto de Armando Sena:

04/10/09

Dia mundial do animal

Hoje, em vários pontos do país, comemora-se o dia do animal ( e do Médico Veterinário) organizando campanhas de sensibilização e adopção de animais abandonados. É de enternecer a expressão de muitos destes animais. Têm um tal olhar que perturba de tão comovente, a que não é alheia a história de abandono e o próprio stress que estes eventos implicam, por mais bem intencionados que sejam.
Pela experiência que tive em algumas destas acções, a taxa de sucesso de adopção é enorme, sobretudo graças a crianças que retêm teimosamente os pais no recinto, encantadas com aquela espontaneidade e ingenuidade de quatro patas...tão similar à delas, afinal....
Entre súplicas persistentes, apelos com lágrimas e exigências firmes, os pais lá se rendem ao convívio dos nossos amigos. E felizmente , a maioria destas histórias são felizes. Os animais encontram ou reencontram um lar que os acolhe "para sempre"...

Excepções a este final, também existem muitas, com a devolução às instituições de acolhimento e à reincidência do abandono. É incompreensível a insensibilidade, responsável por histórias miseráveis de maus-tratos aos animais, que além do abandono, incluem envenenamentos deliberados e outras torturas psicopáticas, que põem a cobro o pior do ser humano... Ainda hoje há quem afirme que os animais não sofrem como nós, que não padecem de stress como nós. Pessoas incapazes de reconhecer nestes seres um amigo. E que amigo!, soubessem eles...
Viver com um animal, trabalhar com eles e para eles, é para mim um privilégio, um orgulho imenso, o que por si só torna o meu trabalho, provavelmente, menos stressante que os demais.

E remato a parafrasear Leonardo da Vinci (1452-1519):
"Chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais e, neste dia, um crime contra um animal será considerado um crime contra a humanidade".

... Até porque as sociedades e os valores a elas inerentes também se traduzem no reconhecimento de que "os animais são nossos amigos".

03/10/09

Obrigada


Foi um bom espectáculo. A cada uma de vocês, as que participaram, as que não participaram; as que vieram assistir e as que não puderam vir, o meu muito, muito obrigada!

Bem-hajam!

01/10/09

O Teatro


Falar do Teatro é mergulhar num amor teimoso que não se arreda de mim há 24 anos. Tinha entrado na adolescência quando fui arrebata pela intensidade,tão racional quanto irracional, do Teatro. Foi uma entrega inquestionável, que no entanto me ensinou a questionar, e a pensar. Um tempo que me roubou tempo de estudo, mas que o devolveu em ensinamentos que ainda hoje se sustentam. Foram sacrifícios enormes, que se compensaram em afectos para a vida. Foi, ainda é, um dos grandes incitadores do meu destino... O Teatro enformou-me. E transformou-me. E estes, creiam, são efeitos milagrosos desta arte.

Há quase um ano, e após anos consecutivos a vivenciar o Teatro "só" como actriz, propuseram-me que desse aulas de Teatro numa instituição que apoia jovens mães ( e menos jovens também) carenciadas. Não hesitei sequer em aceder e muitas terão sido as razões que contribuíram para isso...

A primeira aula foi difícil. Uma das responsáveis transmitiu-me a mensagem de que se eu não quisesse continuar , compreenderia, até porque eu ingressara na instituição como voluntária.
Propus um exercício de integração e apresentação. Protestaram. Perguntei-lhes o que esperavam das aulas, responderam que estavam ali contrariadas. Que ideia tinham do teatro? Não gostavam.
E não mentiam. Entre as carências imensas que lhes ditaram muitas das agruras que a sua pouca idade já experenciou, denunciaram sempre a verdade do seu carácter. Não se imbuíram de mentiras para vingarem na vida, nem das verdades dos outros para se afirmarem.
Saí da aula consciente do meu insucesso, mas decidi que não desistiria. Porque tinha gostado delas, daquelas meninas já mulheres e já mães. Crianças ainda, com estórias escritas a dor, muita dor... e revolta.

Fiquei. E entre a minha insistência e a resistência do grupo, a minha teimosia e os seus protestos (que poderá simbolizar o Teatro a quem mendiga a sobrevivência todos os dias?!), o milagre aconteceu. Foram pequenos milagres, que se assumem gigantes, quando penso no dia-a dia destas meninas, muitas privadas de afecto, outras sem família, sem ninguém que lhes fale de valores, que lhes ensine a sonhar e a vislumbrar o futuro, o seu e o dos filhos que já carregam...

No dia 27 de Março (dia do Teatro) conseguimos participar num festival de Teatro Amador com um pequeno texto,cuja comicidade lhes arrancou inúmeras gargalhadas (inclusive em pleno palco!). Elas que, suspeitei, nem sabiam sorrir... As mais resistentes agora pediam para participar nas actividades. De uma vi despontar um grande sorriso após imensas sessões de obstinação. Ou talvez de tristeza...Outra superou a imensa timidez e até nos contou a sua história de amor. Outras voluntariam-se, agora, para ler, quando antes se envergonhavam de ainda soletrarem as palavras. Interagem positivamente umas com as outras quando antes se atropelavam em incidentes e guerrilhas que, não raras vezes, tive de mediar .... E uma outra, já mais velha, decidiu voltar a estudar numa escola profissional. A iniciativa foi sua, a escolha também. Começou este mês a estudar. Teatro!, quer ser animadora Cultural.
Sem se aperceberem, sei que todas elas, de uma forma ou de outra, foram cativadas pelo irrequieto e sedento "bichinho do teatro". Sei que o Teatro, mais uma vez, se interpôs no trilho dos que, por acaso (ou talvez não) o interceptam, e cumpriu o seu fim sublime: resgatá-los, nem que seja por momentos, do sofrimento que os mina; encorajá-los a debater-se nas dificuldades; embebê-los de afectos e pensamentos... Mas sobretudo, enformando-os. E tranformando-os!
No próximo sábado apresentaremos o segundo espectáculo. Desta vez, a leitura de poemas infantis de Sidónio Muralha, que lerão e interpretarão em público, para os seus filhos e para os filhos de todas as mães.
E corra como correr, não importa, o milagre vai acontecer!

Poema do actor


O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores(...)
Ninguém ama tão desalmadamente como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo ao pequeno talento humano(...)
O espantoso actor que tira e coloca e retira o adjectivo da coisa,
a subtileza da forma,e precipita a verdade(...)
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus(...)
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira, e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamentedo Nome.
Nome que se murmura em si, e agita, e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.Que sangra.Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo, enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.O actor transforma a própria acção da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.Faz crescer o acto.O actor actifica-se(...)
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela. Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimentode onde brota a pantomina (...)
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder

Um grande poema! Dos que mais dignificam o Teatro e o actor.